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Por semanas, essa coluna vem se debruçando sobre os temas em torno da reforma tributária. São complexos e muito intrincados e, para quebrar o gelo, os textos sempre trouxeram inspirações literárias ou filosóficas, a ideia era preparar a alma do leitor. Mas agora precisamos fazer uma pausa, tanto na abordagem da reforma tributária quanto nas tentativas de quebrar o gelo, porque as coisas ficaram bastante tensas no último dia 4 de junho, quando o país foi pego de surpresa com a publicação da medida provisória (MP) nº 1.227/2024.

Primeiro foi o susto, depois o sentimento de incredulidade. E, então, veio aquele silêncio profundo, típico de quando fazemos reflexões sérias sobre a realidade. Em uma única canetada, o governo impôs severos prejuízos às empresas do agronegócio, fabricantes de medicamentos, do setor petroquímico, exportadores, atacadistas e varejistas de remédios, higiene pessoal, autopeças e indústrias de muitos outros segmentos. Foi um verdadeiro strike. Nunca antes na história deste país, um presidente da República conseguiu prejudicar tanto a economia nacional de uma só vez, talvez a única analogia possível seja com o confisco das poupanças do governo Collor. Os representantes da equipe econômica chamaram a medida de “MP do equilíbrio fiscal”, advogados e contribuintes primeiramente a apelidaram de “MP do mal”, mas como o nome das coisas deve expressar a sua real natureza, não demorou muito para cravarem “MP do fim do mundo”.

Há razões robustas para que a MP tenha esse nome de batismo. Mas, antes de as maldades serem explicadas, falemos do panorama que existia até então para esses contribuintes.

Segundo a legislação, o PIS e a Cofins incidem sobre a receita auferida pelos contribuintes no curso de suas atividades econômicas. Por serem tributos indiretos, os encargos fiscais são repassados nos preços de bens e serviços cobrados do comprador, o que geraria o indesejado efeito cascata ao longo de uma cadeia de produção e comercialização, conforme já expliquei em outra oportunidade nesta coluna. Para eliminá-lo, os contribuintes estão autorizados a tomar créditos sobre o PIS e a Cofins que gravaram a operação de seu fornecedor. Com isso, o valor dos tributos não será carregado no custo da própria mercadoria, porque serão reconhecidos como “moedas escriturais” para pagamento dos tributos e, uma vez que os preços de revenda terão bases líquidas das exações, não há efeito cascata.

Todavia, a dinâmica da tributação mostrou que era necessário ampliar o uso dos créditos. A experiência começou em 2004, quando uma inovação legislativa permitiu que os contribuintes mantivessem os créditos de PIS e Cofins, mesmo que suas vendas não fossem tributadas. Estão nesse grupo, por exemplo, exportadores, agronegócio, distribuidores e varejistas de medicamentos, autopeças e combustíveis, entre outros. Nada mais natural, afinal, se fossem obrigados a anular seus créditos pelo fato de a operação ser isenta, os contribuintes os somariam ao custo da mercadoria vendida e, em última análise, acabariam por tributar indiretamente uma operação que deveria ser isenta.

Mas, se os contribuintes tinham créditos e, por outro lado, não poderiam usá-los, porque sua operação não era tributada, então esse ativo não era realmente um ativo, porque não trazia benefícios. E na ausência de benefícios, seria melhor que o valor dos tributos fosse repassado no custo, pois assim o prejuízo seria menor. Mais uma vez, para impedir o efeito cascata, desde 2005 a legislação passou a permitir a utilização irrestrita desses créditos, autorizando sua compensação com quaisquer tributos administrados pela Receita Federal, como IPI, IRPJ, CSLL e contribuição previdenciária patronal, de 2018 em diante. E, caso ainda restassem saldos após tantas compensações, os contribuintes ainda poderiam ser ressarcidos em dinheiro, após devido processo administrativo.

Nesse ponto, o legislador e a administração tributária demonstraram ter chegado ao nível máximo de compreensão a respeito dos danos que o efeito cascata pode causar, porque tomaram as medidas certas para evitar que tributos viessem a compor o custo de bens e serviços comercializados. Mas a cereja do bolo ficou com a luz jogada sobre certos setores, que são tidos como essenciais à sociedade.

Vamos olhar primeiro o agronegócio, que é o campeão da economia brasileira, com suas significativas contribuições à balança comercial e à geração de empregos no país. Muitos dos insumos utilizados pelo setor vêm de pessoas físicas, como fazendeiros. Por não serem contribuintes de PIS e Cofins, não calculam as contribuições em suas vendas, o que retira do adquirente o direito à tomada de créditos. Entretanto, os itens que formam o patrimônio da pessoa física, que instrumentalizam a sua produção, foram adquiridos com o PIS e a Cofins incidentes na venda de seu fornecedor, como os implementos agrícolas, as cercas, as rações, entre outros. Por isso, mesmo que o fazendeiro não calcule as contribuições em seu preço, ele acaba por transferir encargos à agroindústria.

Não há dúvidas de que alimentos são bens essencialíssimos, logo, nenhum gravame fiscal deve ser computado ao custo dos produtos. Orientada por essa regra de ouro, a legislação permite a tomada de créditos presumidos de PIS e Cofins pelo agronegócio, que até o dia 3 de junho podiam ser empregados na compensação com quaisquer tributos federais, ou mesmo ressarcidos em dinheiro, caso houvesse saldo credor ao final do trimestre. Também aqui a ideia era dar utilização integral aos créditos para que não viessem a ser integrados ao custo dos alimentos.

A indústria farmacêutica contava com direito semelhante. Tal como os alimentos, remédios são essenciais à população e, desde o ano 2000, a legislação prevê regime diferenciado de PIS e Cofins para grande parte dos medicamentos tarjados. De acordo com as regras de apuração, chamada “monofásica”, esses medicamentos contam com alíquotas majoradas que, somadas, chegam a 12%. Entretanto, se a indústria preencher certos requisitos e firmar acordo com a União, poderá fazer uso de crédito presumido calculado pela mesma alíquota de 12% sobre o valor das vendas. O objetivo declarado dessa sistemática, que inclusive consta da legislação, é zerar a tributação e baratear os medicamentos. Mas esse benefício não anula o direito das indústrias farmacêuticas de contrair créditos sobre as compras de insumos e outros gastos. É natural que esses créditos se acumulem, dada a ausência de tributos a ser recolhidos em função do uso do crédito presumido. Também para evitar que esses valores fossem computados nos custos dos medicamentos, em 2014 a legislação passou a permitir que a indústrias os compensem com outros tributos federais, ou ressarcidos em dinheiro, caso houvesse saldo.

Agora, vamos à maldade da MP nº 1.227/2024. Ela simplesmente revogou todas as possibilidades de uso dos saldos credores de PIS e Cofins para pagamentos de impostos federais. Desde tempos remotos, os contribuintes incorporaram em seus planos de investimento e de resultados o uso de créditos das contribuições para abatimentos fiscais, reservando o caixa para pagamento de fornecedores, folha de salários, expansão de atividades. Mas, sem nenhum aviso, desde o último dia 4 de junho, quando a MP nº 1.227/2024 foi publicada e entrou em vigor, o uso dos créditos do PIS e da Cofins foi restrito ao abatimento das próprias contribuições, apenas. Eventuais saldos poderão ser ressarcidos em dinheiro, mas, mediante longo processo administrativo, que pode durar meses e cria um gigantesco descompasso no fluxo de caixa dos contribuintes. Para o agronegócio a medida foi mais amarga, porque os saldos dos créditos presumidos, que não foram utilizados na apuração, não poderão ser sequer ressarcidos, serão totalmente perdidos.

O prejuízo é gigantesco, conforme alguns números que já foram divulgados. O setor de suco de laranja deve ter um impacto de cerca de 400 milhões de reais, mas o choque é maior no setor da soja, que pode chegar a 6,5 bilhões de reais. Para distribuidoras de combustíveis as perdas são estimadas em 10 bilhões de reais. A Confederação Nacional das Indústrias avalia que empresas de manufatura terão perdas de 29 bilhões de reais e, em 2025, da ordem de 60 bilhões de reais. Outros setores ainda estão fazendo contas, mas os valores já divulgados indicam que a tungada será histórica.

O apelido da MP nº 1.227/2024, “do fim do mundo”, nos remete naturalmente à descrição do Apocalipse. Atualmente há fome e terremoto no mundo, a violência generalizada tem esfriado o amor nos corações das pessoas e estamos assistindo a nação se levantando contra nação em duas guerras em andamento, que ameaçam ganhar escala. Mas a MP nº 1.227/2024 realmente pode significar o fim para parcela expressiva das empresas afetadas. Com caixa repentinamente estrangulado e oxigênio subitamente cortado, algumas terão que fazer um trade off difícil: não pagar fornecedores e salários, cujo resultado pode ser a paralisação de suas atividades, ou não pagar impostos, o que pode atrair a mão pesada do Fisco. O mercado e a sociedade também perdem muito, porque alimentos, combustíveis, medicamentos e outros itens terão seus custos acrescidos de tributos, o que invariavelmente impactará seus preços.

Ações judiciais serão ajuizadas para contestar a medida e haverá pressão sobre o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para devolver a MP nº 1.227/2024 ao Executivo. Pelo andar das coisas, torçamos para que nos próximos dias o Sol não escureça, que a Lua não perca seu brilho e que as estrelas não caiam do céu.

Fonte: Veja
Seção: Indústria & Economia
Publicação: 11/06/2024

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